04 novembro 2008

Banha da cobra II

Sobre o episódio de do nosso primeiro ministro transformado em vendedor da banha da cobra, Pacheco Pereira, dizia isto no Abrupto



A DEGRADAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA

Eu imagino o ar entalado do ministro dos Negócios Estrangeiros, um homem civilizado e capaz, moderado e "diplomata", no bom sentido da palavra, ao ver o que se estava a passar, ao ver o seu primeiro-ministro a fazer de vendedor de cobertores como se estivesse numa feira manhosa, promovendo o "verdadeiro computador ibero-americano". Sócrates, na pele de vendedor de uma empresa privada, a JP Sá Couto, que produz em regime de monopólio um computador que o Estado português "compra", sem concurso público, em condições mal explicadas e mal esclarecidas, deu mais um passo num processo bizarro de envolvimento do Estado português como caixeiro-viajante de uma só empresa portuguesa. Imagino o que dirão as outras empresas do mesmo ramo, esmagadas perante esta competição desigual.



Retratos da diplomacia económica: eles vendem o Boeing, o Airbus, a Nokia, e nós, o Classmate da Intel.

Ninguém está obviamente contra a chamada "diplomacia económica", nem ela em si rebaixa ninguém. Os americanos vendem a Boeing, os finlandeses a Nokia e os franceses o Airbus, os franceses aliás vendem até muito mais do que o Airbus, a julgar pelas armas que Saddam tinha, já o embargo internacional ao Iraque estava em vigor. Mas o caso do "Magalhães" está a transformar-se numa estranha promiscuidade entre uma empresa privada, na qual o Estado português formalmente não tem qualquer interesse, nem escolheu por qualquer concurso público (o mito urbano é que foram as operadoras de comunicação que decidiram tudo sobre o "Magalhães", que apenas depois foi colocado no sapatinho do primeiro-ministro para ele fazer propaganda), e que acaba por se tornar central na política de vendas do Estado português. A JP Sá Couto não trabalha de graça, como é óbvio, e beneficia exponencialmente de ter a diplomacia portuguesa e o primeiro-ministro a vender os seus produtos e a aumentar os seus lucros.

Mas a história só piora cada dia. Ela está a degradar cada vez mais a nossa política externa, com momentos ridículos, pasto dos Gatos Fedorentos, tanto mais que se passam numa cimeira internacional. É penoso ver Sócrates a dar computadores, numa extensão do e-escolinhas, aos chefes de Estado ibero-americanos, perante o sorriso irónico da maioria dos chefes de Estado, que, ou aproveitavam a descontracção para ir ver o correio íntimo ou o site dos jornais da oposição dos seus países (quando ainda sobrevive a oposição), ou o puro desinteresse daqueles que não estão ali para ouvir aquelas brincadeiras um pouco inconvenientes. Sócrates nem sequer se apercebe, que, quando diz que o computador é resistente aos líquidos, pela cabeça daqueles adultos empedernidos, os líquidos que se imaginam não são propriamente nem água, nem leite, nem iogurte.

Mais. Sócrates obviamente nunca faria uma cena daquelas num conselho europeu, e nessa diferença está a rebaixar os seus anfitriões, como se estivesse ali a fazer de sr. Oliveira da Figueira, a trocar umas contas de vidro por ouro entre os tuaregues do deserto. Sócrates falava para os "índios". E os "brancos" na reunião, como Zapatero, estavam noutra. Um desses índios, explicou ele, uma criança grande chamada Chávez, uma criança descuidada e desajeitada, até tinha atirado o "Magalhães" ao chão para lhe gabar a resistência. E nem sequer passava pelo óraculo da televisão a mensagem de "Não tentem repetir isto em casa". Gostava de ver as criancinhas, perante o olhar horrorizado dos pais, a atirar o "Magalhães" contra as paredes. Experimentem e mandem a conta a Chávez e a Sócrates.



Software usado no seu trabalho pelos assessores do Primeiro-ministro, "que não precisam de outro computador" a não ser o "Magalhães"

Eu tinha vergonha de lá estar e ouvir um primeiro-ministro de Portugal a dizer que os seus assessores não precisavam de outro computador para trabalhar a não ser o "Magalhães", concebido para as crianças do ensino básico, o que implica que devem passar o dia a soletrar a tabuada com carneirinhos e florzinhas a voar no ecrã. Deve ter sido assim que foi feito o Orçamento pelos assessores, a jogar ao "peixinho" no "Magalhães", até que uma "mão invisível" saindo da sombra, certamente com um Dell ou um Sony Vayo ou um MacBook Air ou um qualquer computador muito a sério, lá escreveu a anónima alteração da lei do financiamento partidário. Essa não foi feita de certeza num "Magalhães". É que, se fosse verdade que os seus pobres assessores tivessem de laborar nos seus gabinetes de "Magalhães" à frente, o que obviamente não é verdade, isso diria muito sobre o infantilismo de toda esta conversa.

Não é só que não haja paciência, não há outra coisa, não há a noção de que a nossa política externa não pode estar reduzida a uma imitação europeia de Chávez. Sim, porque não é Chávez que imita Sócrates, é Sócrates que anda a imitar Chávez, e o original é muito melhor do que a imitação. Infelizmente de há muito que a nossa política externa anda por casas de muito má fama, por Angola, pela Líbia, pela Venezuela. Uma, duas, três vezes. Já o disse e repito: aquilo que Sócrates dá verdadeiramente a estes governantes corruptos, demagogos e perigosos não é o "Magalhães".

Não é o "verdadeiro computador ibero-americano", por singular coincidência ianque e da Intel, que eles querem. Dá-lhes jeito para repetir umas cenas de propaganda, a troco de um navio de petróleo, mas o que Sócrates lhes dá no fundamental é a respeitabilidade de serem unha com carne com um país da União Europeia, cujo primeiro-ministro não se importa de andar de braço dado com eles na rua.

A degradação da nossa política externa está não em dar-se com todos os países com que temos relações diplomáticas, não em fazer negócios mesmo com gente pouco recomendável, mas sim na caução e legitimação política dada a regimes opressivos e pouco democráticos. É por isso que Chávez tanto gosta de Sócrates. Ele é o seu "europeu" de estimação, o seu troféu na União Europeia para atirar à cara dos ianques e de gente como o Rei de Espanha que o mandou calar. É também este atestado de legitimidade que andamos a vender, não é só o "Magalhães".

(Versão do Público, 1 de Novembro de 2008.)

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